segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Precisamos falar sobre o Kevin

Baseados nos preceitos cristãos, o início da vida terrestre é marcado pela teoria do criacionismo, onde Deus teria criado o primeiro homem e a primeira mulher para viverem juntos no paraíso, com uma única proibição: não comer o fruto do conhecimento. A partir do momento que a mulher rouba um fruto, iludida pelo diabo, cai sobre ela o peso de ter cometido o primeiro pecado e ter condenado a humanidade, razão pela qual as mulheres foram rebaixadas na sociedade teocrata. 

Eva, a primeira mulher, seria mesmo o receptáculo da maldade? Merece essa pobre alma tamanho descontentamento com suas ações? Errar é humano. Passando para o presente, temos outra Eva: Eva Katchadourian (Tilda Swinton) mora numa casa sozinha, com vizinhos que a odeiam e jogam coisas em seu carro e nas suas paredes e está cercada por pessoas que lhe evitam. Mas ela era uma mulher feliz, dona de uma agência de viagens e apaixonada por seu companheiro, Franklin (John C. Reilly). 

Quando Eva tem seu primeiro filho, Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller), a experiência não é nada como ela esperava. Enquanto o filho permanece um anjo na presença do pai super protetor, quando ele está sozinho com a mãe, Kevin mostra quem ele realmente é e o que realmente pensa. Durante os 110 minutos da sessão assistimos a transição do passado e do presente de Eva e o que ocorreu para que ela acabasse nessa situação.

Para primeiramente aceitar todo o discurso de Precisamos Falar Sobre o Kevin é preciso sentir as duas partes do problema. De um lado há os vizinhos cheios de raiva e ódio por um ato que modificou a vida de famílias. A culpa nesse caso é da mãe, aquela que ensinou tudo ao filho, certo? Esse é o lado que sempre se verifica para dar peso às notícias, mas nessa obra de Lynne Ramsay vê-se o outro lado. É contada toda a história da mãe, e isso de uma forma completamente distante do maniqueísmo usual. 

Não há bom e não há mal na história de Eva, aliás, como ela pode condenar de uma forma tão pesada seu próprio filho? Desde o nascimento de Kevin, percebe-se um ódio mútuo entre o filho e a mãe, mas o mesmo tipo de ódio que o mundo sente por Eva após os atos de Kevin? Eva odeia o filho, mas ainda assim é seu filho. Ela deu a luz a ele, ela faria qualquer coisa para ele, ela ainda vê esperança no menino rude, no garoto malvado, em seu filho desregrado. Kevin, ao mesmo passo, detesta a mãe, mas não há amor nesse ódio? Em closes bem colocados e flashbacks, o filme vai conduzindo a plateia da melhor forma até o desfecho, com a ótima direção da escocesa Lynne Ramsay.

Com saltos no tempo constantes, o filme baseado no best-seller de Lionel Shriver capta o protagonismo da mãe e o antagonismo do filho toda hora. Kevin critica a mãe e essa é sua verdadeira essência. Numa cena, o jovem delinquente interpretado por Jasper Newell se mostra irado com a mãe. Ao ouvir o menor sinal do pai, sua faceta muda para um jovem brincalhão e angelical, o tom de voz se torna mais vivo, seus gestos menos controlados. O jovem Kevin fez um trabalho maravilhoso na construção do personagem. Por mais caricato que esteja sua distinção entre o jovem comportado e o jovem zangado, dá pra se notar o teatro que ele faz com a vida real. 

O que faz Kevin mostrar seu verdadeiro eu para a mãe e fingir-se para o pai? O Kevin adolescente é diferente. Enquanto a criança se distingue entre os pais, o adolescente não mostra mais distinção. Sua indiferença com o mundo é geral, mas as lembranças ainda o tornam a mesma pessoa para cada um: para o pai, a criança interessante que virou o adolescente rebelde e divertido. Para a mãe, um pequeno exemplo de psicopata que virou um grande exemplo de psicopata. E Ezra Miller está ótimo fazendo sua linha do jovem pragmático, paciente e extremamente maléfico.

Ao longo da fita, temos a atuação contrastante com a de Kevin. Não, não é John C. Reilly, que faz um personagem tipicamente norte-americano, mas a desconfiada Tilda Swinton, numa performance de deixar cair o queixo de qualquer desavisado. Ao mesmo tempo que o crescimento de Kevin é explorado no passado, lida-se com o presente vivido por essa mulher sofredora, que tenta reconstruir sua vida social. O único problema seria o social, que não permite o monstro voltar a ter sua vida anterior. É com a mesma indiferença de Kevin junto a uma tristeza profunda que ela constrói a mulher fragmentada, a mãe que perdeu tudo o que tinha, uma "intocável" na sociedade ocidental. Para continuar marcando o filme, há a presença da trilha sonora de Jonny Greenwood e a fotografia bastante avermelhada e escura de Seamus McGarvey.

Até qual ponto a educação paterna influencia nas atitudes filiais? Chega de falar apenas do Kevin, também é preciso fala de Eva. Durante toda a sessão somos apresentados à uma metáfora incessante da família feliz norte-americana, um casal que se dá bem com dois filhos perfeitos. E desde quando existe tamanha perfeição assim? Tirando as máscaras, Eva é uma receptora para aquilo que os outros não veem. Ela realmente percebe o que há implícito naquele que ela deveria amar e, mesmo com atitudes de rejeição e nojo com o seu filho, a realidade da mãe ainda é certa: ela crê no Kevin até o fim. Tilda Swinton está soberba em sua performance de Eva Katchadourian. E essa pecadora - que admite esse seu defeito -, devido aos delitos que cometeu ou não, se tornou uma santa com o dom da redenção. Uma santa que teve uma viagem direta ao inferno que seu primogênito fez questão de lhe preparar.

Crítica: Gabriel Neves/Crítica Mecânica

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