quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Acossado

Entre a tristeza e o nada, eu escolheria a tristeza

Apenas nos primeiros minutos de Acossado (À Bout de Souffle, 1960), Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo, um dos principais contribuintes de Godard) visita e furta uma amante, quebra o espaço de campo ao falar com o público, rouba um carro e mata um policial, o que fará com que seja perseguido por todo o filme ao fugir para Paris. É com esse tipo de pessoa que iremos passar nossa próxima hora e meia, acompanhando suas novas trapaças, roubos e a tentativa de conseguir conquistar a bela aspirante a jornalista Patricia Franchini (Jean Seberg), com quem dormiu algumas noites e, dentre todos os seus affairs, é a única que realmente mexe com ele.


Crítico de importantes publicações e um visionário precoce que ajudou a quebrar as proeminências de um cinema americano formulado, Godard demonstra em Acossado todas suas características que viriam a pontilhar o movimento que se firmou anos depois, a Nouvelle Vague, e também suas influências e paixões, como Hitchcock e os noirs de Humphrey Bogart. Godard defendia o autor como único responsável por sua obra, aquele que assume os riscos para devolver o poder à câmera e ao público, ao contrário de uma indústria que buscava (e busca) apenas o entretenimento. Acossado é a soma de um pouco de tudo.


A montagem abraça a ideia e, com isso, os cortes inesperados constroem falas mais alongadas, contínuas, quase ininterruptas. Mas, acima disso, denunciam sentimentos: no começo, com o assalto e demais agitações, os cortes são mais frequentes e excluem os momentos de tranquilidade entre uma fala e outra; já durante a longa conversa entre Michel e Patricia, no famoso plano sequência enquanto a mesma vendia jornal na rua, temos a calmaria e a paz que Michel encontrava apenas quando estava com ela. Como o som fora inserido todo na pós produção, em um trabalho impecável de sincronia, pode ser que a trilha sonora tenha servido toda como inspiração para este novo tipo de montagem.

Quebrando paradigmas também no modo de se fazer cinema, Godard utiliza como base de Acossado uma história de seu então amigo François Truffaut (eles brigaram feio após A Noite Americana [La Nuit Américaine, 1973]), mas dá liberdade aos atores para improvisarem nos diálogos para deixar tudo mais fluente, realista, chegando a reescrever quase que diariamente algumas passagens do roteiro para que elas ficassem ao seu gosto.

Michel é uma pessoa difícil. Grosseiro, dá constantes foras em Patricia, que ainda assim dá atenção e mantém proximidade com o protagonista. Tem no passar do polegar na boca uma de suas principais características. Fumante excessivo, pratica o ato em locais inadequados como banheiros e na própria cama, deixando cair cinzas nos lençóis e não se importando com isso. Acende um cigarro no outro apenas para não ter que riscar um fósforo - ação que, aliás, é ligada pelo personagem ao sentimento de medo (ou falta de) uma pessoa. E aí que entra a verdadeira essência de Acossado: sua filosofia.

A partir daqui, detalhes importantes do desfecho serão revelados. Leia por sua conta em risco.

Citando ‘Romeu e Julieta’, o caso de amor entre Michel e Patricia desenvolve-se em tons de reflexão existencialista, algo recorrente na carreira de Godard. O que é viver? O que é preciso para viver? E, em torno disso, as ações de ambos vão ditar o rumo dos personagens em tons claros de tragédia: ele, por não crer no futuro, apenas querer o amor de Patricia e ir para a Itália, quem sabe para viver uma vida diferente ou recomeçar; enquanto ela, uma americana perdida no sonho parisiense, se vendendo para fazer contatos e tentando crescer na profissão de jornalista, convivendo com a incerteza do que o amor que sente por Michel pode trazer para sua vida - podendo inclusive estar ou não grávida dele, já que o filme nunca deixa claro.

Lotado de diálogos impactantes, a resolução de tudo não poderia ser diferente quando este se sente traído. Para que fugir se, com o que Patricia fez, ele já estava preso ao amor e morto pela traição? É melhor sentir tristeza do que nada sentir. É um belo final para um belo filme.

“Nossa história é nobremente trágica, como a face de um tirano.”

Crítica: Rodrigo Cunha/Cineplayers

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