Como O Garoto da Bicicleta, novo filme dos irmãos Jean-Luc e Pierre Dardenne, é protagonizado por uma criança, mas não visa a um público necessariamente infanto-juvenil, não é de se espantar que os temas da obra sejam livres de predisposições etárias. Cyril (Thomas Doret), de 11 anos, passa por situações complicadas, pois vive em um internato e quase nunca consegue falar com o pai, Guy (Jérémie Renier).
Apesar de sempre ouvir a caixa eletrônica no telefone, nunca receber ligações em retorno e até mesmo saber que Guy já se mudou, Cyril se mantém determinado a contatá-lo. Tenta também encontrar sua bicicleta, muito especial, mas dizem que ela foi vendida. Samantha (Cécile de France), ao ouvir a história do garoto, decide reaver a bicicleta. Ele agradece e em breve já pede para passar os fins de semana com a mulher. Cyril, porém, é bem mais bravo do que ela esperava.
O principal desdobramento do roteiro é o envolvimento do jovem protagonista com Wes (Egon di Mateo), que é taxado de traficante pela vizinhança. É a partir dessa relação que o projeto dos Dardenne se tornará mais claro. Cyril, na verdade, passa por sentimentos, ou poder-se-ia dizer até por tirocínios, que não têm idade definida para sucederem. Na verdade, nem todo mundo recebe essas lições da vivência, pois elas só se revelam úteis quando têm de ser postas em prática.
É, essencialmente, um filme de erros. O garoto se inicia errando na acepção popular: ele incorre em um grande engano na busca fantasiosa por um progenitor que não corresponde às exigências mínimas da paternidade. Após a “adoção” de Samantha, aí sim existem toques de uma errância clássica. Não que o tempo que ele passa com Wes seja apenas isso, já que o suposto traficante, que lhe oferece diversão e lições, lhe parece a possível figura paterna que o torna tão obsessivo e focado.
Através destes ensinamentos, Cyril se torna um errante. Sua confiança, gerada talvez pelo desejo de ter um pai funcional, é o ponto de partida para atos desencontrados, fúteis, e a partir destes erros ele encontrará o aprendizado de fato. Desde o início, percebe-se que o personagem insiste no equívoco, mas aprende: quando ele vê dilacerada uma de suas esperanças, apesar de normalmente ter outra pronta para usar como norte, o garoto não teima em se opor à realidade.
Mais um sinal de que os cineastas não querem emular a mentalidade infantil – pois a criança costuma ser acoplada a uma visão de mundo mais suave, ou até mesmo falsa, quando a verdade é brutal –, e sim experiências específicas. O conflito em que Cyril se envolve no terço final da projeção é absurdo, mas funciona como um rito de passagem de um lado a outro da percepção da violência. Vale notar que ele pede desculpas pelo ferimento que causou em Samantha, e não pela imensa turbulência emocional pela qual ele a fez passar.
De um lado, há o aprendizado da brutalidade, que desencadeia na prática, de forma justa, mais brutalidade, escancarando o rito de passagem em dois personagens de idades distintas; do outro, o ensinamento sobre esperanças otimistas prescinde de uma comparação tão visível. É uma jogada um tanto ousada, pois sugere o envolvimento do espectador na medida em que não mostra uma pessoa mais velha sofrendo pelos mesmos motivos de Cyril. É como se o expurgo moral da violência fosse preferível apenas no tecido moral da ficção, ao passo que o otimismo é mais trivial – é comum e até banal passar pela superação dessa visão de mundo.
Esperança, inconsequência, individualismo: o pequeno protagonista de O Garoto da Bicicleta carrega em si atitudes que quase nunca desaparecem por inteiro nas pessoas. O enfoque na infância apenas indica que não existe idade breve demais para superar – ou, ao menos, para a suspender, em certos momentos – essas posturas. O garoto simboliza a experiência em curso, e agrega diversas lições, ordinárias ou não, nessa rica e agitada vivência.
Uma melodia toca em uns poucos momentos de transição, mas se dissipa antes do corte, deixando sons ou silêncio. O contraste contido nesses planos musicados/silenciosos atesta tanto para o valor fabular, de aprendizagem, como para a viva banalidade do movimento ou do repouso: os Dardenne se dedicam ao conjunto indissociável dos dois registros.
Crítica: Pedro Costa De Biasi/Cinepop
Nenhum comentário:
Postar um comentário