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sexta-feira, 9 de março de 2012

O artista

Como já previsto, a produção franco-americana dirigida pelo francês Michel Hazanavicius e estrelada por John Goodman, Berenice Bejo, um cachorro adorável e o já citado Jean Dujardin; é um filme mudo. Isso significa que possui todos os elementos presentes no cinema realizado em Hollywood no início do século XX. Elementos como a câmera parada, diálogos em caixas de texto, fotografia em preto e branco, planos de câmera básicos, atuações exageradas e a trilha sonora constante na ação dos personagens.

No ano de 1927, o grande astro do cinema mudo George Valentin, estreia mais um de seus sucessos. Mas com a ascensão do cinema falado e da jovem atriz Peppy Miller, o ator e o estilo cai em decadência. Perpassando alguns fatos históricos como a queda da bolsa de 1929 e o surgimento de novas técnicas de captação de vídeo, o filme mostra de forma divertida e emocionante a decadência do cinema mudo, bem como seus artistas que caíram no esquecimento. Dujardin fisicamente e profissionalmente, possui o perfil para o personagem, com uma construção bem elaborada de trejeitos e ações. Com destaque para o cachorro, amigo de Valentin, que em muitos momentos rende risos e comoção por sua "atuação". John Goodman é a famosa figura dos produtores de estúdio.

A produção explora todas as características do estilo, com direito a uma trilha bem desenvolvida por Ludovic Bource, ganhador do Globo de Ouro e indicado ao Oscar. Aliás, a narrativa também possui "quebras" na estética. Durante um pesadelo, Valentin vê o mundo com sons: copo que bate na madeira, o cachorro latindo, mulher rindo uma pena caindo no chão. Neste momento, os planos e a movimentação da câmera também modificam, sinalizando uma mudança na perspectiva. Essa não é a única quebra na narrativa. No encerramento do filme, uma cena mostrando o início dos musicais. Mas desta vez, falado. Sim, o longa encerra com diálogos e em diferentes planos de câmeras. Podendo ser visualizado o travelling e uma mudança na forma de produção.

Com um conjunto de elementos característicos do cinema e através da metalinguagem, O Artista é uma homenagem aos artistas do cinema mudo e à história do cinema mundial.

Crítica: Thais Nepomuceno/Cinepop

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Medianeras - Buenos Aires Na Era do Amor Virtual

Urbano, jovem, inspirado, atual, divertido, inteligente, charmoso. Sim, los hermanos argentinos, ainda que com coprodução espanhola, conseguiram de novo e realizaram mais um ótimo filme: Medianeras, que recebe o subtítulo (questionável? dispensável?) Buenos Aires na Era do Amor Virtual.

Com muito estilo, Medianeras foca toda a sua narrativa sobre duas solitárias almas portenhas: Martin (Javier Drolas), um escritor travado que detesta sair de seu pequeno apartamento, e Mariana (a bela espanhola Pilar López de Ayala, de Lope), recém-traumatizada pelo término de um relacionamento. Ambos moram na povoada e metropolitana Buenos Aires, mas sofrem de um dos maiores males do século: o isolamento. E sua consequente solidão.

Como diz Martin, “Há algo mais desolador no século 21 que não ter nenhum e-mail na caixa de entrada?”. Não se trata porém, como o subtítulo pode sugerir, de uma crítica à era virtual em que vivemos. O isolamento dos protagonistas parece ser muito mais um fruto da degeneração das relações sociais advindas do excesso de urbanização que propriamente um fenômeno deste período tecnológico. Uma solidão intrínseca, existissem ou não os computadores e a internet.

Talvez com uma ponta de inveja, talvez para melhorar nossa autoestima brasileira, vale dizer que Medianeras tem um certo toque de Jorge Furtado. Principalmente pela narração espirituosa e do bom texto que pontua toda a ação com saudáveis doses de sarcasmo e observações pertinentes. Como, por exemplo,”O que se pode esperar de uma cidade que dá as costas para o seu rio?”, numa ácida crítica à capital argentina.

Mas as comparações param por aí. O filme tem personalidade forte e própria, e acerta ao transformar o mau humor e a empáfia argentinos (nestes pontos eles se parecem com os franceses) em matéria-prima para a sua própria autoironia.

O filme é o desdobramento do curta homônimo realizado em 2005 pelo menos diretor (Gustavo Taretto, agora aqui estreando na direção de longas), com o mesmo ator principal, e muito premiado em festivais internacionais. Fazer do curta um laboratório para o longa funcionou: este novo Medianeras ganhou os Prêmios de Público da Mostra Panorama do Festival de Berlim e no recente Festival de Gramado.


Crítica: Celso Sabadin/Cineclick

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A fita branca

Em A Fita Branca, o cineasta Michael Haneke volta a aproximar-se de filmes desafiadores de sua carreira, como Caché e A Professora de Piano, para contar uma parábola sobre a maldade humana.

O narrador da história, que se passa às vésperas da Primeira Guerra Mundial, é um professor de uma pequena aldeia no norte da Alemanha. Nesse local provinciano, de poucos moradores, que diversas tragédias se descortinam a partir do momento em que o médico local é vítima de um atentado que o leva a cair do cavalo. O acontecimento assusta os moradores de imediato, que passam a testemunhar estranhas e violentas situações no pequeno povoado.

Paralelamente, observamos em A Fita Branca como as crianças da aldeia sofrem, principalmente com o excesso de rigor na educação. Chegar mais tarde depois da escola pode ser motivo de açoitamento. É com brutalidade extrema que os adultos educam suas crianças e todas as tragédias do filme são consequência desses atos violentos. A fita branca do título remete ao símbolo utilizado pelo pastor local na educação de seus filhos: ela simboliza a inocência, a qual ele acredita estar sendo perdida por qualquer deslize natural de seus filhos. Inevitavelmente, as crianças nesta aldeia crescem com uma noção precisa do senso de crueldade. O único personagem que parece ter certo distanciamento mais crítico, digamos, da realidade toda é o professor e narrador, que vive sozinho, longe do pai. Coincidência? Haneke não quer apresentar respostas ou analisar a complicada essência humana: ele dá espaço para que o espectador pense nestas questões e por isso a perturbação.

Haneke desenvolve um drama de forma silenciosa, com fotografia em preto-e-branco. Sem grandes movimentações de câmera – aliás, a câmera está parada o tempo todo, contemplando a ação, em enquadramentos perfeitos -, firulas estéticas e numa montagem sóbria, A Fita Branca é desenvolvido sobre o roteiro e as atuações, especialmente do elenco infantil, dando a base perfeita para que o espectador se sinta no mínimo incomodado com a crueldade adulta que permeia todo o longa. É um filme forte, contundente e reflexivo. Premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2009, Haneke mostra mais uma vez que seu cinema não perde a força com o tempo, pelo contrário: o cineasta consegue provocar o espectador como poucos.

Crítica: Angélica Bito/Cineclick

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Eu Matei Minha Mãe

A produção canadense Eu Matei Minha Mãe (J'ai tué ma mère, 2009) propõe-se a explorar a natureza da relação entre mãe e filho tomando como exemplo a problemática relação entre Hubert (Xavier Dolan) e sua mãe Chantale (Anne Dorval).

Dolan, diretor e protagonista do filme, escreveu a história quando tinha 16 anos, com base em suas próprias experiências. Na forma de um desabafo cinematográfico, as angústias de Hubert são mostradas na tela com muita intensidade e é por se basear em um sentimento real que as situações não parecem extremas ou caricatas.

Hubert frequenta o colegial e discute com a mãe no café da manhã, no carro, no jantar... A raiva que ele sente de Chantale se agrava ainda mais quando ele conhece a mãe de seu seu namorado, Antonin (François Arnaud), mulher liberal, que leva garotos mais jovens pra casa, não vê problema na homossexualidade do filho e até permite que ele fume maconha em seu quarto.

No entanto, por mais que às vezes Hubert perca o controle e externe sua raiva e frustração de forma violenta, este não é um filme sobre ódio pela mãe. É evidente que Hubert ama Chantale. Se não houvesse amor, não haveria tamanha intensidade na raiva. Temos aqui um sentimento que não é unicamente benigno e está mais para aquele amor em busca de reconciliação de Fernando Pessoa, que pede "tempo para acertar nossas distâncias".

Eu Matei Minha Mãe não é maniqueísta. Hubert não discute com a mãe porque ela é má ou o priva de suas vontades. Chantale está ali tão perdida quanto o filho que criou sozinha, sem saber como impor-lhe disciplina ou recuperar a proximidade que existia quando ele era apenas um menino.

Além do foco na atuação, Dolan também faz boas escolhas como diretor, utilizando a imagem para complementar a narrativa - peca apenas quando tenta desnecessariamente intensificá-la com simbolismos (borboletas e imagens de santas: quem aguenta?). Mas, para aqueles que se identificam com a situação ali retratada, não há como deixar o cinema intocado. A força do filme está mesmo no emocional.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pi

Incrível como as surpresas aparecem do nada. Conheci Darren Aronofsky em O Lutador, de 2009. Um bom filme que realmente merecia seus créditos, e na época pensei que era o melhor que o diretor poderia fazer. Me enganei feio. Há uns dias vi o incrível Réquiem Para Um Sonho e me surpreendi ao ver que Aronofsky aparecia mais uma vez após tanto tempo num filme tão bom quanto o outro.

Agora vejo seu primeiro filme, Pi, e me surpreendo ainda mais. Não que tenha gostado deste tanto quanto Réquiem, mas é inegável a sensação de estar defronte a uma obra. E, ainda mais, Pi foi feito com um visual totalmente independente, sem qualquer gasto exorbitante.

Apenas com 60,000 dólares, o filme faturou 53 vezes mais só nos Estados Unidos. Para se ter uma ideia, a mãe do diretor que criou os figurinos e o espaço foi cedido a partir de um negócio da família Aronofsky.

Maximillian Cohen (Sean Gullette) é um gênio matemático antissocial que acredita que o nosso mundo é feito de padrões matemáticos e, graças a isso, sua maior ambição é achar um padrão na bolsa de valores. Quando Max começa, aos poucos, a adivinhar a queda da bolsa, ele se depara com um misterioso número de 216 dígitos. Perguntando o significado para seu mentor, Sol Roberson (Mark Margolis), ele recebe uma resposta vaga sobre um bug da internet. Mas ele vê o quão perto está de seu padrão com esse números quando representantes de Wall Street e rabinos da religião judaica o procuram para desvendar mistérios relacionados a seu trabalho.

Bom roteiro, Darren conseguiu relacionar a matemática com a religião e a economia de um modo surreal e inteligente, com uma lógica inegável. Vemos através de algumas cenas como o diretor é o mesmo que Réquiem Para Um Sonho: tanto os personagens deste quanto o protagonista de Pi utilizam drogas para poderem pensar claramente e nas duas obras vemos closes nos remédios para demonstrar que eles foram utilizados, e esses closes se repetem freneticamente ao decorrer da película.

 A obsessão do personagem de Sean Gullette é outro atrativo em especial na obra, o quanto ele se treme a medida que as relações sociais dele aumentam, toda a mania de perseguição que ele sofre e por começar a misturar a realidade com o sonho. As atuação, principalmente Sean Gullette e Mark Margolis são bem convincentes, conseguem segurar o filme.

Vale a pena assistir Pi pois, indubitavelmente, foi o filme mais angustiante que eu já vi. Todos os enquadramentos da câmera, o cenário altamente claustrofóbico, o drama em que a personagem entra, a obsessão de seus delírios matemáticos, de poder colocar tudo do mundo num padrão que ele pode resolver facilmente. Nunca vi cena mais perturbadora que ele cutucando o cérebro com uma caneta. A filmagem em preto e branco só aumenta a tensão causada por esse filme que se abstém de explicações lógicas para dar lugar à própria lógica. Confuso, mas merece ser conferido.

Crítica: Gabriel Neves/Crítica Mecânica

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Os descendentes

Após a cena pré-créditos de Os Descendentes (The Descendants) a tela fica toda preta e começa uma música. Com apenas algumas notas já sabemos que este é o filme indie que o Oscar vai adotar neste ano. A produção foi dirigida por Alexander Payne, que já havia acertado este mesmo alvo há alguns anos ao abrir algumas garrafas de vinho em Sideways. E, convenhamos, ter George Clooney no elenco obviamente não atrapalha. Aliás, o ator faz por merecer a sua indicação ao prêmio. A cena em que ele aparece correndo de chinelo pelas ruas da sua vizinhança é a antítese da corrida tecnicamente perfeita de um Tom Cruise e por si só já valeria a indicação à estatueta dourada.

No filme, Clooney interpreta Matt King, um dos descendentes do título. Ele e seus primos herdaram de seus ancestrais centenas de hectares de terras que um dia pertenceram à realeza havaiana. Mas enquanto a maioria deles não trabalha, vivendo apenas desta renda, Matt é um advogado e também o responsável legal por gerir tudo o que sobrou do espólio. Às vésperas de fechar um acordo imobiliário de meio bilhão de dólares, sua esposa sofre um acidente de barco e entra em coma. A situação leva Matt a se reaproximar de suas filhas e repensar seu passado e futuro.

Como nos diz Matt em sua primeira interação com o público, o filme também se presta a mostrar um Havaí diferente do paraíso dos resorts de luxo que sempre se vê nos filmes e séries, ou das disputas entre locais e "haoles", como eles chamam os estrangeiros. Existe também a interessante missão não declarada de mostrar ainda que, sim, todo mundo por lá usa camisa havaiana, mesmo em eventos sociais.

A forma praticamente invisível com que Payne comanda o longa-metragem quase nos faz esquecer que estamos no cinema. A trama, que já tem elementos fáceis de se encontra nos cotidianos de qualquer um, se desenrola também como a vida, deixando tudo muito fácil de degustar, até mesmo as partes mais amargas - que não são poucas. A relação pai-filhas do trio formado por Matt, Scottie (Amara Miller) e Alex (Shailene Woodley) leva do riso ao choro sem causar estranheza, nem parecer forçado. Afinal, qual menina de 10 anos não está perdida na sua passagem da infância para a puberdade, ou qual adolescente não quer curtir a vida de quase adulto que está ali na esquina, mas não tem paciência de esperar chegar lá?

Com tantas reflexões, o filme leva ao seu grande destino, o autodescobrimento. É na hora de pegar a filha mais nova na escola que o pai percebe que não existe na sua memória uma lembrança recente de ter feito isso em muito tempo. É ali no hospital, ao ver a mãe paralisada na cama do hospital, que a filha percebe o quanto é parecida com a mãe que ela se acostumou a destratar.

A forma como os fatos são apresentados - em meio a uma investigação particular - fazem o público também parar para pensar no seu próprio dia-a-dia, colocar em perspectiva o que fizeram até aqui e analisar o que vem pela frente. Fidelidade, dinheiro, paternidade, relacionamentos, sentimento de culpa, tudo isso é colocado em xeque de uma forma discreta, mas bastante eficaz. Por tudo isso, Os Descendentes é o queridinho indie do Oscar deste ano. E por méritos próprios.

Crítica: Marcelo Forlani/Omelete

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O espião que sabia demais

O que nos impede de nos matarmos? Seria disciplina, um senso de preservação, um código social, um medo específico? Em Deixa Ela Entrar, fazer o mal é uma tentação sempre presente, estimulada pelo poder de destruir. Para o diretor sueco Tomas Alfredson, o mundo opera numa sucessão de violências a serem contidas - a questão é entender como contê-las.

Muito oportuno, portanto, que seu esperado novo filme, O Espião Que Sabia Demais (Tinker, Tailor, Soldier, Spy), trate da principal sinuca-de-bico que a humanidade enfrentou nessa ânsia de se matar: a Guerra Fria. É um filme tão moral quanto Deixa Ela Entrar, e que também passa por pequenos dramas domésticos, mas numa escala obviamente muito maior.

A trama se ambienta no início dos anos 1970, quando o Serviço de Inteligência do Reino Unido já se encontra alienado do conflito cerebral entre a CIA e a KGB, embora continue no meio do fogo cruzado. Seria uma posição só melancólica se não fosse perigosa; para todos os efeitos, àquela altura todo espião britânico sabia demais, e livrar-se de um ou outro não faria tanta diferença.

George Smiley (Gary Oldman) é um deles. Integrante do Circus, a divisão de elite do serviço secreto, Smiley é dispensado quando uma operação desastrosa em Budapeste custa o cargo de seu chefe, conhecido pelo codinome Control (John Hurt). O ex-espião então faz o que se esperaria de qualquer empregado público aposentado: vai pra casa. O descanso não dura muito, porém. Suspeita-se que um dos quatro remanescentes do Circus seja um homem duplo, infiltrado pelos soviéticos, e o governo convoca o veterano Smiley para descobrir quem.

É ótima a trilha sonora composta por Alberto Iglesias, mas o tema de Smiley é particularmente marcante. A música acompanha toda a cena da despedida inicial do personagem, saindo da sala fechada do Circus, passando pelas escrivaninhas das secretárias, escadas abaixo, até o velho porteiro diante da catraca do prédio. O que dá o tom nesse começo de filme (de uma forma ostensiva até) é a questão geracional - idosos tricotam e adolescentes se beijam - e o choque também está presente dentro do Serviço Secreto, onde os jovens chegam para trabalhar de bicicleta e os velhos andam em silêncio.

O Espião Que Sabia Demais pode passar a impressão de que sua história de "último serviço" (Smiley diante da oportunidade de legar aos mais novos a sua experiência, ao investigar o vira-casaca) implica uma certa nostalgia, mas o filme não se atém a isso. A trama não-linear envolve os demais personagens num cenário que é bem mais complexo do que uma mera museologia do período - e com ela Alfredson tenta encontrar pistas do que impediu que nos destruíssemos no Pós-Guerra.

E aí talvez aquelas quatro opções do início tenham, cada uma, seu peso. Existe um senso de preservação: o respeito à privacidade é a preocupação inglesa por excelência, e não por acaso as tocantes subtramas do filme tratam de afetos secretos e sacrifícios pessoais. Existe uma disciplina: George Smiley não tira os óculos nem para nadar; são óculos (trocados metaforicamente no início do filme para enxergar o novo mundo que começa) de quem se compromete com o trabalho e, por extensão, com a coisa pública. Unindo público e privado há um código social: Alfredson filma à distância, por vitrines e janelas, frequentemente colocando a câmera em espaços fechados e o elenco na rua, como se frisasse que a moral é acima de tudo uma questão de cidadania.

E por fim há um medo específico, justamente o temor do potencial de destruição. Os arroubos de violência em O Espião que Sabia Demais - a coruja morta na sala, a mulher executada diante de um homem que não a conhece - são tão chocantes quanto os de Deixa Ela Entrar, porque inesperados. São fáceis e breves demonstrações de destruição que servem para nos lembrar (sem precisar dizê-lo) da violência maior que seria a consumação da guerra.

Por coadjuvarem entre soviéticos e americanos, os ingleses se prestam, numa licença poética que a literatura e o cinema usam bastante, a observadores ideais do que representou o perigo nuclear. (James Bond não é ícone por acidente.) Tomas Alfredson se apropria dessa licença poética e faz não apenas um grande filme sobre a Guerra Fria como também um belo ensaio sobre os custos de manter a ordem - um preço que George Smiley e os seus pares, funcionários-do-mês de Sua Majestade, tragicamente pagam tão bem.

Crítica: Marcelo Hessel/Omelete

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

21 gramas

O filme começa numa confusão de cenas, algo totalmente misturado, sem qualquer linearidade padrão. O espectador é jogado num universo onde as cenas se mostram a partir da vontade do diretor e do roteirista da película, todas alternando situações leves e tensas numa mesclagem indistinta entre passado, presente e futuro. Esse é um dos pontos altos de 21 Gramas.

O filme não tem ponto alto, realmente, porque todos os pontos altos são jogados de uma vez só, criando o filme em seu próprio ápice. Enquanto uma situação se acalma, a outra está culminando. E as cenas só são jogadas ainda mais para nossa mente, quando começamos a especular sobre as possíveis tramas, novas cenas reveladoras aparecem quebrando nosso pensamento.

É um filme interativo, nos força a pensar ao mesmo tempo que vemos, pensar para poder montar o quebra-cabeça de 125 minutos jogado ao ar e criar uma história realmente concisa.

Paralelamente, 3 vidas seguem indiferentes umas as outras: Há primeiramente Paul Rivers (Sean Penn), um ex-professor de matemática que está a beira da morte, pois já está há meses na fila de um transplante de coração. Sua mulher, Mary Rivers (Charlotte Gainsbourg) está nervosa pois seu maior desejo e ter um filho do marido antes que ele faleça, então prepara uma inseminação artificial completa sem ao menos saber do desejo do companheiro.

Ao mesmo tempo temos Cristina Peck (Naomi Watts), casada com um homem maravilhoso e com duas belas filhas resultantes do matrimônio, uma mulher com um passado obscuro que encobre tudo por debaixo dos panos do casamento. E, do outro lado, há Jack Jordan (Benicio Del Toro), um ex-presidiário que após todos os seus crimes hediondos encontrou uma redenção de sua vida mundana na palavra de Deus. Todas essas 3 vidas são mudadas após um acidente que cruza o destino de todos.

A obra é uma adepta da teoria do caos, a partir de uma única ação vidas inteiras são mudadas. No caso, essa teoria é colocada como a palavra de Deus através de uma religião usada para mudar a vida de pessoas como Jack Jordan, que precisam de algo consistente para poder seguir sem cometer seus crimes. E a partir disso algumas das melhores atuações da última década são colocadas na tela. Não há do que reclamar do trio principal. Sean Penn está ótimo, nada menos e muito mais. Convence o público o tempo inteiro. Naomi Watts carrega todo o peso emocional da estória. Sua atuação é poderosa e suas cenas sentimentais são o auge do auge que é o filme. Benicio Del Toro ainda consegue roubar a cena de Watts e coloca toda a sua tensão e lado emocional a posta em seu personagem fervoroso. Bela fotografia e um cenário propício para esta.

No meio do filme (que talvez seria o começo ou então o fim), Sean Penn comenta que a matemática pode decidir vidas inteiras, que os matemáticos buscam colocar os número em todos os lugares possíveis e impossíveis. Qual o verdadeiro peso de uma vida? O verdadeiro peso de um amor? A matemática coloca 21 gramas nessa situação. Dizem que todos perdemos 21 gramas no exato momento de nossa morte. Mas é isso que uma vida pesa mesmo? O filme termina com a reflexão de o quanto você consegue colocar em suas 21 gramas que vai tirar de seu corpo vivo e levar para a morte. Você consegue colocar nas 21 gramas o peso de sua redenção e esquecer que vivo você foi preso inúmeras vezes? Você consegue colocar em suas 21 gramas o peso do amor inexorável sentido em vida, para ser capaz de amar até um pedaço da verdadeira paixão no corpo de outra pessoa? Você consegue colocar sua busca pela vida nos 21 gramas ou neles só cabem a vingança que você buscou, uma vingança cega sem limites?

O questionamento principal do filme é o valor de sua vida. O valor da vida está jogado em cenas desconexas se colocadas em certa ordem, mas coesas se colocadas em outra. E não só o valor da vida, o valor das suas "21 gramas", tiradas de sua vida. O valor do que mais marcou sua vida está carregado em todas as gramas que forem perdidas ao longo da morte. Há uma vida após a morte, é o que Sean Penn mostrou após sair de um estado de "coma", que era sua espera pela morte na fila de transplantes, é o que Naomi Watts mostrou ao continuar amando o que restou de seu marido no corpo de outro, é o que Benicio Del Toro comprovou ao criar duas vidas para seu personagem, antes e depois de Cristo. E o que você leva dessa vida, no caso a vingança, são seus 21 Gramas. O filme não ficaria completo se não fossem as atuações magníficas do trio principal, as melhores das carreiras deles pelo que já pude conferir. Um filme necessário, até demais.

Crítica: Gabriel Neves/Crítica Mecânica

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

José e Pilar

Em José e Pilar (2010), a intenção do cineasta lusitano Miguel Gonçalves Mendes é mostrar o relacionamento de José Saramago com a jornalista espanhola Pilar Del Río. No entanto, a impressão mais forte que fica é o retrato do escritor, já "próximo da porta de saída", como ele mesmo, aos 84 anos, descreve seu momento de vida.

Com sua morte tão recente - foi em 18 de junho deste ano, aos 87 anos, que Saramago veio a falecer -, acompanhar o Nobel da Literatura nas telas até em cenas banais, como jogando Paciência no computador, dará um sentimento de saudade aos fãs. Em alguns momentos, até se esquece que aquele velhinho afável é o autor de obras tão controversas, que despertaram a ira de conservadores e católicos ao redor do mundo.

José e Pilar, que começou a ser rodado em 2006, acompanha o dia-a-dia de Saramago enquanto escreve A Viagem do Elefante e sua posterior turnê de lançamento. Ali tomamos conhecimento do suporte prestado por Pilar, que administra a agenda do autor, seus compromissos, cartas e convites para participar de solenidades. Chega a ser cômica a esnobada de Saramago a um convite do Dalai Lama, cujos assessores parecem ter esquecido a convicção de ateu e comunista do escritor.

No entanto, apesar de Pilar mostrar-se uma mulher extraordinária, de forte visão política e apresentar muita classe ao revidar os ataques da imprensa lusitana, que tenta retratá-la como a Yoko Ono da Península Ibérica, sua presença no filme é sempre secundária ao carisma de Saramago. É evidente a paixão do casal e talvez o José como o conhecemos não existiria se não fosse por Pilar, mas é apenas por causa do marido e das polêmicas que o relacionamento gerou que ela se torna merecedora de destaque - Pilar é 26 anos mais jovem que ele, acusada de roubar Saramago de sua pátria-mãe para viver nas Ilhas Canárias, entre outras pirraças dos portugueses.

Como narrativa, um dos principais méritos do filme é não se utilizar da linguagem tradicional do gênero documentário, mas ainda assim cumprir sua função. Não temos aqui entrevistados sentados em um cenário previamente preparado e trechos de notícia só são inseridos quando José e Pilar estão realmente assistindo a TV ou ouvindo rádio.

Assim, chegando ao fim do texto somos levados de volta ao primeiro parágrafo, para elaborar o ponto mais tocante desta história, que não é o amor de José e Pilar. São as reflexões sobre a finitude da vida, trazidas ao espectador pelas declarações de Saramago, que ficam após os créditos. E realmente, não deve haver tristeza e sentimento de impotência maior que "sentir, como perda irreparável, o findar de cada dia".

Crítica: Carina Toledo/Omelete

domingo, 29 de janeiro de 2012

Pina

Há um certo incômodo inicial ao se ver Pina, documentário de Wim Wenders sobre a coreógrafa alemã Pina Bausch, uma das maiores da história da dança. Morta em junho de 2009, sua obra monumental estaria, com sua morte, condenada a desaparecer. É com pesar que se começa a ver o filme: aquela beleza toda prestes a perecer. Mas Pina, o documentário, porém está longe, muito longe de ser um grande funeral da artista. Termina como uma boa parte de suas peças, com humor e nenhum traço de amargura. Alguns dançarinos entrevistados afirmam que, após trabalhar com Pina Bausch por 22 anos, não sabem o que vai ser de suas vidas sem ela; Wenders captura as imagens, todas carregadas de emoção.

Como Pina morreu no auge da carreira, o que vemos na tela é o que há melhor na dança contemporânea do final do século 20 e início do 21. Da primeira fase da carreira da artista, mais sombria, vemos duas obras seminais, Café Müller, de 1978 (que Pedro Almodóvar usou na abertura de seu Fale com Ela [Hable Com Ella, 2002]), e Le Sacre du Printemps, de 1975 (versão de Pina para um clássico A Sagração da Primavera, com música de Igor Stravinsky). Da segunda fase da carreira da coreógrafa, Konthakthof, de 2000, e Vollmond, de 2006. São escolhas acertadas por parte do diretor alemão: não só vemos as duas fases da carreira da artista (e a prova de que a sua arte não envelheceu em absolutamente nada desde os anos 70, quando as peças foram criadas) como duas peças mais tradicionais, "dança pura" (Le Sacre du Printemps e Konthakhof), e duas com estruturas que só têm razão de ser nas peças de Pina Bausch.

Wenders filma tudo com requinte e bom gosto, fazendo leves e irônicos comentários das peças, bem ao estilo de Pina, como ao usar atores de verdade nas encenações de Konthakthof, e principalmente ao usar a cidade da companhia, a industrial Wuppertal, ela mesmo uma parte do filme. Explica-se: Pina e seus dançarinos buscavam inspiração no cotidiano, no dia-a-dia das pessoas comuns, gestos inusitados que qualquer um pode ver no metrô indo para o trabalho. Nada mais natural que, num filme, devolver o material ao seu lugar de origem.

Wenders, realmente inspirado nessa sua homenagem a uma artista tão especial, ousou usar a mesma estrutura das peças de Pina para criar seu documentário. Pina não criava as coreografias e depois fazia seus dançarinos repeti-la: ela a tirava deles, usando a bagagem pessoal de cada um deles para criar suas peças. A Wuppertal Tanztheater é seus bailarinos. As coreografias de Pina Bausch são criações de seus bailarinos. Pina as extraía, as montava e lhes dava corpo. O resultado é ao mesmo tempo extrovertido e confessional. Wenders fez a mesma coisa e usou depoimentos dos dançarinos entrecortados de suas atuações. Cada dançarino falou no seu próprio idioma, e sim, ouvimos Regina Advento falar em português, depoimento esse que vai resumir o filme inteiro: uma homenagem densa, porém bem humorada, como a coreógrafa gostaria.

Além das escolhas certas sobre o que filmar e de como fazê-lo, Wenders também acertou pelo que deixou de fora, como a infrutífera discussão se o que Pina Bausch faz é dança ou teatro - o assunto, motivo de discussões inócuas há décadas, é sugerido no trailer, mas felizmente o diretor não caiu nessa armadilha (é óbvio que é dança, a dramaturgia que está ali não é a mesma do teatro tradicional, o que interessa a Pina é o movimento, os gestos, não contar histórias e diálogos). Além disso, Wenders passou ao largo das eternas polêmicas envolvendo a obra de Pina nos EUA, onde foi e continua sendo atacada (hoje, menos). Em especial nas páginas das revista New Yorker, quando a reacionária crítica Arlene Croce e sua substituta Joan Acocella acusam Pina de não ter técnica para dançar, de fazer peças violentas, com estupros e toda sorte de ataques às mulheres, do fato de os homens serem constantemente humilhados em cena, da falta de consistência de suas peças (seriam apenas um amontoado de esquetes unidos apenas pelo tema) e, claro, da duração excessiva, de ter sexo misturado com crueldade e absurdo, e um interminável etc.

Há também entrevistas de arquivo (bem poucas) em que Pina, sempre com um cigarro na mão, dizia não servirem as palavras para descrever a dança, de forma que Wenders nem vai usar muito a palavra, logo ele, tão prolixo, para descrever o trabalho da coreógrafa. É no entanto triste ver Pina fumando tanto (ela pedia vôos com escala quando viajava da Alemanha para os EUA justamente para fumar durante as trocas de avião), sabendo que será um câncer a causa da sua morte aos 68 anos.

Toda essa sofisticação do documentário é o que a gente espera mesmo de Wim Wenders. Wenders era considerado um grande diretor até o final dos anos 80, principalmente depois que venceu o Festival de Cannes com Paris, Texas (idem, 1984) ou com os anjos cruzando o então em pé Muro de Berlim de Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin,1987). De lá para cá, só fez filme ruins, alguns brutalmente horrorosos, que nem o sucesso de outro documentário, o indicado ao Oscar Buena Vista Social Club (idem, 1999), conseguiu aplacar sua má fama de espanta-bilheteria (seria Wenders melhor documentarista que diretor?). Em Pina ele soube ser detalhista, bem humorado, fez inserções realmente esclarecedoras, filmou tudo de maneira elegante e plástica, aproveitando-se dos figurinos de Marion Cito e da música de Thomas Hanreich, colaboradores de Bausch. Sua pesquisa foi densa e muito bem informada, vê-se que o diretor está falando de um assunto que domina bastante e aparentemente lhe é caro. Há momentos geniais, como os dos dançarinos praticamente contracenando com as engrenagens do metrô.

Pina abriu o deslumbrado Festival de Toronto e é a indicação da Alemanha para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Muito difícil afirmar que o filme conseguirá atingir uma plateia mais ampla daquela que conhece dança contemporânea ou mesmo os inúmeros fãs de Pina Bausch. De qualquer forma, Pina é muito mais elaborado e melhor de se ver que 90% dos documentários de dança que passam na TV a cabo, como o (mais uma vez...) indicado ao Oscar Dancemaker (1998), de Matthew Diamond, sobre o coreógrafo americano Paul Taylor, ou o aclamado La Danse: The Paris Opera Ballet (2009), de Frederick Wiseman, para citar dois dos mais bem sucedidos da área feitos recentemente, no qual o didatismo arruina qualquer possibilidade de excitação em frente à obra que está sendo analisada. Pina estaria mais próximo de Crumb (1994), de Terry Zwigoff, semi biografia, semi documentário sobre a obra do desenhista americano Robert Crumb: são obras que, para dar conta do universo dos seus artistas retratados, vão além da simples narração biográfica, exposição das obras mais importantes e depoimentos dos principais atores na vida do artista em questão.

Talvez por ter feito uma obra para público restrito, em tese aberto a inovação, Wenders foi mais longe do que o habitual. Tomara que a experiência ajude o diretor a encontrar um rumo em sua carreira comercial.

Crítica: Demetrius Caesar/Cineplayers

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Bonequinha de luxo

Audrey Hepburn e Truman Capote são dois nomes que poderiam ser considerados simétricos. O charme e delicadeza de uma, confrontada com o modernismo e a realidade crua e cheia de adjetivos do outro indicava que uma combinação desses dois nomes era algo simplesmente impossível de se acontecer no cinema. Eis que, em 1961, o diretor Blake Edwards conseguiu a proeza de adaptar uma história do ousado escritor de personagens complexos e de morais duvidosas com a delicada Hepburn como protagonista de uma obra cinematográfica. O resultado é pesado, bonito e delicado.

A história gira em torno de Holly Golightly (Hepburn), uma jovem e linda mulher de Nova York que está decidida a mudar de vida casando com um milionário – sua inocência ao tomar os cafés da manhã em frente à clássica loja Tiffany’s quase se confunde com a futilidade das mulheres caçadoras de dinheiro. Só que sua vida muda quando ela conhece ‘Fred’ (George Peppard), um escritor frustrado que vive sustentado pela amante, colocando os próprios conceitos de Holly contra ela mesma ao se relacionarem de forma mais intensa.

Um dos grandes méritos de Edwards é conseguir fazer um romance urbano de maneira tão clássica e bela. Por vários momentos, dada a construção do luxo imaginário da personagem, temos uma linda direção de arte que se confunde com a fumaça da realidade de Nova York, fotografando de forma diferente a cidade. Mas não espere ver uma história grandiosa, cheia de cifras; tudo em Bonequinha de Luxo é muito real o suficiente para convencer não como uma fábula, mas sim como um drama verdadeiro de uma pessoa que apenas quer vencer na vida. Só que, graças à delicadeza como tudo é contado, temos um resultado final extremamente interessante e contrastante.

É óbvio que Holly é uma garota de programa, mas pelo olhar ingênuo que Hepburn concede à personagem ela torna-se extremamente dócil e sonhadora. Nunca vemos com maldade o que ela quer fazer, pelo contrário, simpatizamo-nos imediatamente com seu jeitinho e com seus sonhos. Ela está deslumbrante e simplesmente apaixonante no filme, mesmo que raramente apareça muito produzida – Hepburn é simplesmente fantástica por natureza e consegue carregar nas costas o fardo de um papel mais pesado como esses de maneira extremamente graciosa (claro que deram uma amaciada na personagem, afinal, estamos falando de Trumam Capote; por exemplo, a bissexualidade de Holly foi deixada de lado).

Há defeitos, claro: o oriental reclamão vizinho de Holly (interpretado pelo excepcional Mickey Rooney) é desnecessário o suficiente para aparecer tantas vezes em tela (serve apenas para impulsionar uma ação que move o final do filme, nada mais), dando um tom cômico desnecessário à trama (e nem tão engraçado assim). Mas quando cenas como a canção na janela, a despedida do Doc e o final na chuva ficam martelando em nossa cabeça, temos a certeza de que fomos presenteados com momentos fortes o suficiente para tornar a obra inesquecível.

Assim como grandes filmes dos anos 60 / 70 (como, por exemplo, Perdidos na Noite), Bonequinha de Luxo mostra a luta de pessoas comuns que querem vencer na vida de qualquer maneira. Só que somando uma encantadora Audrey Hepburn com uma forma charmosa diferente de filmar um drama urbano do gênero, o resultado torna-se bastante curioso. Vale uma conferida, sendo fã dos grandes romances do cinema ou apenas um estudioso de plantão. Tem classe, charme e beleza suficientes para agradar a qualquer um.

Crítica: Rodrigo Cunha/Cineplayers

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Lutador

O novo filme de Darren Aronofsky é uma das seletas obras que levarei comigo a vida toda. Aronofsky, aliás, não é estranho a essa minha lista pessoal de paixões cinematográficas avassaladoras. Requiem Para Um Sonho e Pi também a integram. Mas se esses me assombram cada vez que os assisto, O Lutador me emociona e me faz ter vontade de aplaudir de pé. Um sujeito atrás de mim no cinema, menos preocupado em passar vergonha, o fez. O invejei. As palmas ficaram presas - mas as disparo aqui. O filme adapta o livro que Robert Siegel escreveu sobre Randy "The Ram" Robinson, um astro ficcional da luta-livre dos anos 1980.

Vinte anos depois de seu auge, The Ram (Mickey Rourke) segue fazendo a única coisa que sabe: lutar. Mas os tempos são outros, ele envelheceu, os fãs são poucos e o dinheiro é escasso. Mesmo assim essa espécie de tio-avô bombado dos lutadores mais jovens segue se apresentando. Até o enfarto, depois de uma luta...

Forçado pelos médicos a interromper sua longeva carreira, ele começa a trabalhar no balcão de frios de um supermercado. Enquanto isso, tenta fazer as pazes com sua filha (Evan Rachel Wood) e procura algum alento romântico com uma stripper (Marisa Tomei, ousada e excelente). Mas surge, então, a proposta para uma luta com o seu maior rival, o Aiatolá (Ernest Miller), e fica difícil para The Ram resistir...

Não se trata, como a premissa pode dar a entender, de um típico filme de superação. The Ram não tem qualquer interesse em superar-se. Quer apenas continuar fazendo o que faz melhor... golpear pessoas e ser golpeado enquanto veste colante. É curioso notar como essa motivação não é muito diferente das experiências pessoais de Mickey Rourke. Também um astro oitentista, Rourke desapareceu durante anos, relegado a pontas ou projetos medíocres. Uma oportunidade de retorno surgiu em Sin City, mas não decolou. A redenção chega agora com, em que personagem, que se autointitula "um velho pedaço moído de carne", e ator se confundem em sua mútua redenção.

Rourke está maravilhoso como The Ram e o roteiro tem construção de personagem irretocável, visual e psicológica. O lutador/ator encanta em sua entrega ao filme tanto nos ringues quanto fora deles. As cenas de lutas são profissionais e de um realismo fora do comum (Rourke chegou a cortar-se de verdade nas cenas, de propósito), algo que pode até chocar os mais sensíveis, especialmente a cena da luta contra o Necrobutcher. Para mim, o choque veio mesmo é nas cenas mais cotidianas, como no primeiro e metafórico dia de Ram no balcão de frios, seu bem-humorado contato com a clientela. Chorar durante uma cena cômica - e não me refiro a chorar de rir - foi algo inédito para mim.

Com uma interpretação tão poderosa, Aronofsky só poderia mesmo ter optado pela câmera na mão, naturalista. Ele, literalmente, precisa sair da frente de Rourke em determinadas cenas. A direção voyeuristica, porém, torna-se explosiva durante as lutas, apoiada pela excelente trilha sonora, que mistura clássicos do heavy rock com as músicas incidentais tocadas por Slash e compostas por Clint Mansell.

Por baixo das calças de lycra, dos cabelos compridos e do sangue dos ferimentos, O Lutador esconde uma tragicômica discussão: você é definido pelo que você faz? The Ram não tem a resposta a essa pergunta - mas limita-se a oferecer sua contundente opinião, uma tão fulminante quanto seu golpe voador com cotovelada. Doa a quem doer.

Crítica: Érico Borgo/Omelete

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Discurso do Rei

A temática do filme de superação nunca foi tão verbal como em O Discurso do Rei (The King's Speech, 2010). O drama, ambientado às portas da Segunda Guerra Mundial, trata da dificuldade de um líder em executar uma de suas necessidades fundamentais: falar em público.

Albert Frederick Arthur George (1895-1952), pai da atual rainha da Inglaterra, Elizabeth II, era o segundo na linha de sucessão do Rei George V (1865-1936), depois de seu irmão Edward (1894-1972). Por ser o caçula da Casa de Windsor, ninguém esperava que Albert assumisse o trono, o que aconteceu em 1936, quando o irmão, interessado muito mais em sua própria felicidade do que na do império britânico, abdicou. Mas o que faz um monarca quando, em um dos momentos mais dramáticos da história, é incapaz de transmitir suas ordens e dirigir-se ao povo sem gaguejar?


O problema do Rei George VI, até aqui pouco mais que um curioso rodapé histórico, vira figura central no filme de Tom Hooper, que já havia abordado um lado muito mais cinematográfico da monarquia britânica em Elizabeth.

Pelo tema sisudo e roteiro centrado em diálogos, O Discurso do Rei daria um filme classicista, não fosse o uso extremamente competente da linguagem cinematográfica para ajudar a contar as aflições do rei Albert. Hopper conta com a direção de fotografia de Danny Cohen, que enquadra seu protagonista (vivido por Colin Firth) sempre nos cantos, em planos frontais, mas que beiram milimetricamente o plongée (de cima para baixo). O desequilíbrio cria uma sensação de desconforto, evidenciando o sentimento de inadequação do monarca.

A câmera funciona igualmente bem para o outro lado da moeda, Lionel Logue (Geoffrey Rush), um inadequado de outro tipo - fonoaudiólogo nada ortodoxo que tem a tarefa de ensinar Albert a expressar-se com clareza. O embate de ideias (e educações) é fundamental ao filme e o trabalho de Cohen, que compreende também excelentes sequências de plano e contraplano - que desfrutam do citado desequilíbrio -, participa dele com voz firme.

Alheios a tudo isso e focados em suas próprias tarefas, Colin Firth e Geoffrey Rush executam seus trabalhos de maneira inspirada. O primeiro dá ao rei a inconstância física e dualidade que o papel exige. Na vida íntima, com a esposa e filhas, surge terno e fala com fluidez reservada. Quando precisa desempenhar seu papel como nobre, porém, mantém a dignidade e o porte, mas gagueja de maneira dolorosa de assistir. Fica ainda mais evidente a qualidade do trabalho de Firth quando o vemos durante longas cenas ao lado de Geoffrey Rush. Lionel é um papel menos exigente - e Rush um ator dotado de mais recursos (sua internalização na cena do ensaio da coroação na catedral é brilhante) -, o que poderia enterrar um trabalho menos competente. Se atuar é a arte de reagir, Firth e Rush engajam-se em suas reações como ninguém.

É também um alívio ver, depois de tantos Harry Potter e filmes de Tim Burton, Helena Bonham Carter deixando de lado suas pesonagens estridentes para dedicar-se a uma mulher normal. A atriz interpreta a esposa de Albert com interesse. O elo fraco é mesmo Timothy Spall. Ainda que excelente ator (basta vê-lo em Agora ou Nunca de Mike Leigh), ele dá um peso desnecessário às aparições de Winston Churchill. O inglês era, sim, uma figura que parecia saída de um desenho, mas Spall se entregou às caras e bocas na oportunidade de interpretá-lo. Ao menos sua participação é breve.

Hooper também é extremamente feliz na criação da atmosfera de ameaça vindoura da Segunda Guerra. O grande antagonista do filme é o microfone - o inimigo a ser tornado aliado -, mas o eloquente Adolf Hitler também faz rápida aparição. A cena em que o Rei Albert o observa discursando, franjinha em desalinho devido ao esforço teatral, é quase cômica. As proverbiais nuvens que prenunciam tempestades também surgem na forma de uma sequência na névoa distante, em que paciente e terapeuta brigam sob uma opressiva luz difusa.

Com o intuito de colher informações para escrever o filme, David Seidler, o octogenário roteirista de O Discurso do Rei, conta que procurou a Rainha Mãe, Elizabeth Bowes-Lyon (a viúva do Rei George VI, morta em 2002), algumas décadas depois dos fatos. "Por favor, não o faça enquanto eu estiver viva. A memória desses eventos ainda é muito dolorosa", ela escreveu de volta.

Dolorosa ou não, a história não poderia ter sido contada de maneira mais elegante em O Discurso do Rei.

Crítica: Érico Borgo/Omelete

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Separação

Tem diretor brasileiro que diz que gente rica não rende boas histórias, mas os filmes do iraniano Asghar Farhadi estão aí, ganhando espaço em festivais e premiações, para desmentir.

Os dois mais recentes, Procurando Elly e A Separação, não tratam de "gente rica" como estereótipo - a madame com o champanhe - mas de pessoas de classe alta, com seus anseios particulares, do melhor ensino para os filhos a viagens ao exterior. Que tiram dias para ir à praia, como os personagens de Procurando Elly, ou preocupam-se com seus livros numa mudança, como a protagonista de A Separação.

O que gera interesse nesses filmes de Farhadi é o choque da classe alta - em teoria, secularista e modernizada - com os costumes fundamentalistas da sociedade iraniana. Um choque que frequentemente expõe não só o conhecido atraso das leis do país como também uma hipocrisia de quem, novamente teoricamente, seria o lado mais progressista dessa equação, os "esclarecidos".
A separação que dá nome ao filme já começa praticamente consumada. Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moadi) estão diante de um juiz para acertar o divórcio; ela quer morar fora do Irã e levar sua filha, enquanto o marido insiste em ficar em Teerã para cuidar de seu pai idoso, que tem Alzheimer. O juiz nega o divórcio, pois não há, no seu entender, um fato suficientemente grave para justificar a separação.

Contar o que acontece depois - envolvendo uma empregada religiosa, a filha do casal e uma gravidez de risco - tiraria um pouco do peso do filme. Vale dizer apenas que a trama de A Separação retorna constantemente para a mesa de um juiz. Se em Procurando Elly a tensão crescente vem do desaparecimento de Elly, aqui o sufoco surge da repetição kafkiana de situações de tribunal.

Quando A Separação ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, o ministro das relações exteriores do Irã alertou para o perigo de "dar prêmios valiosos a filmes cujo tema central é a pobreza e as dificuldades de um povo". São dois equívocos: primeiro, entender que a pobreza é o foco (Farhadi expõe mais desvios de caráter na classe alta do que na baixa); depois, confundir exploração das "dificuldades de um povo" com a análise das transformações sociais do Irã.

Transformações essas que, para nós, podem parecer trivialidades, como o fato de Simin e Nader mandarem a filha para o quarto ou a cozinha o tempo todo, enquanto discutem, e ela não atender (Farhadi enquadra a cena para mostrar que a menina permanece no ambiente). É provável que A Separação, ao contrário do grosso da produção iraniana atual, tenha sido muito bem recebido no Ocidente porque trata de uma história universal - o marido que se vê sozinho e, por orgulho, não reconhece que precisa da mulher -, a crise do patriarcado não respeita fronteiras, mas obviamente no Irã isso tem uma dimensão distinta.

No fim, o choque não é tanto entre estratos, mas entre dois momentos: o país que acreditava nos dogmas, numa predestinação social, e o país que hoje convive com a inevitabilidade da mudança, em que a cidadania se conquista diariamente. Cenas como a reconstituição do crime causam perplexidade porque são a materialização desse choque: a reconstituição em si se apoia numa "modernidade", a da análise objetiva da cena do crime, mas as mentiras escondidas pelos personagens - mentiras profundas, ancestrais - impedem qualquer objetividade.

Não por acaso, as mulheres de A Separação, quando choram, aparecem em cena já com a lágrima escorrida até o queixo - é um choro não por uma circunstância, mas por um estado estabelecido de coisas, um choro passado. Farhadi só filma um lágrima por inteiro, presente, quando é a adolescente que a chora. Tragicamente é sobre ela que recai a responsabilidade de impedir que o Irã permaneça nesse limbo aflitivo.

Crítica: Marcelo Hessel/Omelete UOL

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Precisamos falar sobre o Kevin

Baseados nos preceitos cristãos, o início da vida terrestre é marcado pela teoria do criacionismo, onde Deus teria criado o primeiro homem e a primeira mulher para viverem juntos no paraíso, com uma única proibição: não comer o fruto do conhecimento. A partir do momento que a mulher rouba um fruto, iludida pelo diabo, cai sobre ela o peso de ter cometido o primeiro pecado e ter condenado a humanidade, razão pela qual as mulheres foram rebaixadas na sociedade teocrata. 

Eva, a primeira mulher, seria mesmo o receptáculo da maldade? Merece essa pobre alma tamanho descontentamento com suas ações? Errar é humano. Passando para o presente, temos outra Eva: Eva Katchadourian (Tilda Swinton) mora numa casa sozinha, com vizinhos que a odeiam e jogam coisas em seu carro e nas suas paredes e está cercada por pessoas que lhe evitam. Mas ela era uma mulher feliz, dona de uma agência de viagens e apaixonada por seu companheiro, Franklin (John C. Reilly). 

Quando Eva tem seu primeiro filho, Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller), a experiência não é nada como ela esperava. Enquanto o filho permanece um anjo na presença do pai super protetor, quando ele está sozinho com a mãe, Kevin mostra quem ele realmente é e o que realmente pensa. Durante os 110 minutos da sessão assistimos a transição do passado e do presente de Eva e o que ocorreu para que ela acabasse nessa situação.

Para primeiramente aceitar todo o discurso de Precisamos Falar Sobre o Kevin é preciso sentir as duas partes do problema. De um lado há os vizinhos cheios de raiva e ódio por um ato que modificou a vida de famílias. A culpa nesse caso é da mãe, aquela que ensinou tudo ao filho, certo? Esse é o lado que sempre se verifica para dar peso às notícias, mas nessa obra de Lynne Ramsay vê-se o outro lado. É contada toda a história da mãe, e isso de uma forma completamente distante do maniqueísmo usual. 

Não há bom e não há mal na história de Eva, aliás, como ela pode condenar de uma forma tão pesada seu próprio filho? Desde o nascimento de Kevin, percebe-se um ódio mútuo entre o filho e a mãe, mas o mesmo tipo de ódio que o mundo sente por Eva após os atos de Kevin? Eva odeia o filho, mas ainda assim é seu filho. Ela deu a luz a ele, ela faria qualquer coisa para ele, ela ainda vê esperança no menino rude, no garoto malvado, em seu filho desregrado. Kevin, ao mesmo passo, detesta a mãe, mas não há amor nesse ódio? Em closes bem colocados e flashbacks, o filme vai conduzindo a plateia da melhor forma até o desfecho, com a ótima direção da escocesa Lynne Ramsay.

Com saltos no tempo constantes, o filme baseado no best-seller de Lionel Shriver capta o protagonismo da mãe e o antagonismo do filho toda hora. Kevin critica a mãe e essa é sua verdadeira essência. Numa cena, o jovem delinquente interpretado por Jasper Newell se mostra irado com a mãe. Ao ouvir o menor sinal do pai, sua faceta muda para um jovem brincalhão e angelical, o tom de voz se torna mais vivo, seus gestos menos controlados. O jovem Kevin fez um trabalho maravilhoso na construção do personagem. Por mais caricato que esteja sua distinção entre o jovem comportado e o jovem zangado, dá pra se notar o teatro que ele faz com a vida real. 

O que faz Kevin mostrar seu verdadeiro eu para a mãe e fingir-se para o pai? O Kevin adolescente é diferente. Enquanto a criança se distingue entre os pais, o adolescente não mostra mais distinção. Sua indiferença com o mundo é geral, mas as lembranças ainda o tornam a mesma pessoa para cada um: para o pai, a criança interessante que virou o adolescente rebelde e divertido. Para a mãe, um pequeno exemplo de psicopata que virou um grande exemplo de psicopata. E Ezra Miller está ótimo fazendo sua linha do jovem pragmático, paciente e extremamente maléfico.

Ao longo da fita, temos a atuação contrastante com a de Kevin. Não, não é John C. Reilly, que faz um personagem tipicamente norte-americano, mas a desconfiada Tilda Swinton, numa performance de deixar cair o queixo de qualquer desavisado. Ao mesmo tempo que o crescimento de Kevin é explorado no passado, lida-se com o presente vivido por essa mulher sofredora, que tenta reconstruir sua vida social. O único problema seria o social, que não permite o monstro voltar a ter sua vida anterior. É com a mesma indiferença de Kevin junto a uma tristeza profunda que ela constrói a mulher fragmentada, a mãe que perdeu tudo o que tinha, uma "intocável" na sociedade ocidental. Para continuar marcando o filme, há a presença da trilha sonora de Jonny Greenwood e a fotografia bastante avermelhada e escura de Seamus McGarvey.

Até qual ponto a educação paterna influencia nas atitudes filiais? Chega de falar apenas do Kevin, também é preciso fala de Eva. Durante toda a sessão somos apresentados à uma metáfora incessante da família feliz norte-americana, um casal que se dá bem com dois filhos perfeitos. E desde quando existe tamanha perfeição assim? Tirando as máscaras, Eva é uma receptora para aquilo que os outros não veem. Ela realmente percebe o que há implícito naquele que ela deveria amar e, mesmo com atitudes de rejeição e nojo com o seu filho, a realidade da mãe ainda é certa: ela crê no Kevin até o fim. Tilda Swinton está soberba em sua performance de Eva Katchadourian. E essa pecadora - que admite esse seu defeito -, devido aos delitos que cometeu ou não, se tornou uma santa com o dom da redenção. Uma santa que teve uma viagem direta ao inferno que seu primogênito fez questão de lhe preparar.

Crítica: Gabriel Neves/Crítica Mecânica

domingo, 22 de janeiro de 2012

Snatch - Porcos e Diamantes


Guy Ritchie dirige mais rápido que ninguém. Ele te leva de Nova York a Londres em menos de dois segundos. É mais ou menos assim: Cena 1. Táxi amarelo pelas ruas da Big Apple. Corta. Avião sobrevoando o mar. Corta. Homem sentado na primeira classe. Corta. Close no passageiro virando um copo de uísque. Corta. Carimbo da alfândega no passaporte. Corta. Pronto! Estamos no velho mundo.

É nesse ritmo alucinante e empolgante que testemunhamos as encrencas do submundo londrino em Snatch - Porcos e Diamantes, seu segundo longa. O diretor, que ganhou fama mundial no ano passado ao juntar os trapos com a rainha do pop Madonna, estreou em 1998 com o espetacular e cômico Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (Lock, Stock and Two Smoking Barrels, 1998).

Assim como Quentin Tarantino, um dos mais celebrados cineastas dos anos 90, Ritchie tem a sua fórmula. Cortes rápidos e secos - herança da sua experiência como diretor de videoclipes -, personagens extremamente caricatos, cores levemente saturadas e histórias que se entrelaçam são algumas das suas armas para entreter o espectador.

Se em Jogos, Trapaças os personagens normais apenas fazem uma pequena visita ao perigoso mundo do crime, em Snatch os protagonistas são o próprio submundo.

O filme começa com o roubo de um diamante gigantesco em Londres. O ladrão Franky Four Fingers, interpretado pelo ganhador do Oscar de ator coadjuvante Benicio Del Toro, tem uma missão: levar a preciosa pedra para Nova York. Viciado em jogo, Franky não resiste quando fica sabendo que pode apostar numa luta ilegal de boxe.

Enquanto isso, Turco (Jason Statham), um inexperiente promotor, se deixa atrair pelos perigos do pugilismo sem luvas. Ele acerta um luta com Brick Top (Alan Ford), o chefão do crime local e temido criador de porcos. Devido a um imprevisto, o lutador do Turco fica impossibilitado de subir ao ringue e tem que ser substituído. A esta altura o cigano Mickey (Brad Pitt) já foi apresentado a todos... e a confusão está apenas começando.

A idéia era não ter nenhum ator de renome no elenco, mas Brad Pitt fez questão de participar. O astro de Hollywood gostou tanto de Jogos, Trapaças que marcou uma reunião com o diretor PEDINDO para fazer parte de seu próximo projeto. Sorte de Ritchie. Não só arranjou uma grande estrela para estampar os cartazes do filme, como conseguiu um ótimo ator. Pitt está perfeito na pele de Mickey O'Neil, um esperto cigano com o corpo coberto por tatuagens e dono de um soco matador. As cenas em que ele fala, com um sotaque irlândes incompreensível, são hilárias. Ciganos são bons negociadores. Talvez seja porque ninguém entende o que eles falam, diz o Turco sobre o modo como Mickey e seus amigos fazem negócios.

Em Snatch, o maridão da cobiçada Jennifer Aniston mostra que é bem mais do que um rosto bonitinho. Ele prova que, quando acerta ao escolher um bom roteiro, está entre os melhores atores de sua geração.

Guy Ritchie fez quase um continuação de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes. Usou vários atores desconhecidos e nos mostrou o lado cômico do submundo do crime, que tanto parece nos entreter. Mais uma vez ele acertou. Resta saber até quando essa fórmula vai funcionar.

Crítica: Juliano Zappia/Omelete

sábado, 21 de janeiro de 2012

E sua mãe também


Depois de uma estréia promissora em seu país de origem, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón foi tentar a vida no cinema americano, onde fez bons filmes, entre eles A Princesinha e Grandes Esperanças. Após dez anos sem filmar em sua terra natal, Cuarón retornou ao México para realizar o inteligente e sensível E Sua Mãe Também, filme que estréia neste fim de semana nos cinemas brasileiros.

Sua Mãe Também é uma comédia erótico-dramática. Mostra dois amigos adolescentes - Julio (Gael García Bernal) e Tenoch (Diego Luna) - preparando-se para entrar num verão que promete ser dos mais enfadonhos. Suas namoradas foram viajar e ambos estão sozinhos, sem muito o que fazer. Avoados e sem nada na cabeça, Julio e Tenoch são uma espécie de versão mexicana de Beavis e Butthead.


Até que entra em cena a atraente Luísa (Maribel Verdú, de Sedução - Belle Époque), mulher mais velha, casada e européia, que imediatamente chama a atenção dos dois rapazes. Os três decidem ir à praia. Uma simples viagem de alguns dias que definitivamente vai mudar as histórias de suas vidas.

Se nos Estados Unidos este tipo de filme é chamado de "road-movie", talvez no México ele possa ser considerado uma "película-carretera". Nomenclaturas à parte, E Sua Mãe Também retrata várias viagens. Não apenas a física, em que um velho carro passeia descompromissadamente pela miséria e pela intolerância política mexicanas, mas também e principalmente pela psicológica.

Durante três dias, Julio e Tenoch viverão um rito de passagem da adolescência para a vida adulta. Mudarão os conceitos e as idéias pré-concebidas. Ambos aprenderão a perdoar. Luísa, por sua vez, tem um caminho diferente a empreender. Ela precisará romper as amarras de sua própria repressão para poder ingressar num outro estágio de existência.

O interessante de tudo é que na medida em que os personagens se aprofundam e aprendem a viver, o filme também vai se tornando mais sério. Ele começa quase em ritmo de pornochanchada brasileira dos anos 70. O que é coerente com o estilo de vida dos dois rapazes protagonistas. A mudança de paisagem acompanha a alteração do tom da narrativa. O interior do país, árido, combina com a rudeza das brigas que se sucederão. E quando o trio chega ao azul do mar e à amplidão da praia, é como se as relações humanas entre eles finalmente encontrassem luz própria.

Não por acaso, E Sua Mãe Também ganhou dois prêmios no Festival de Veneza: revelação para os dois atores e roteiro. O filme é a segunda maior bilheteria de um filme mexicano, levando mais de 3,5 milhões de pessoas aos cinemas e superando o badalado Amores Brutos (perdeu apenas para Sexo, Pudor & Lágrimas).

Crítica: Marcelo Hessel/Omelete

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Réquiem para um sonho

Prepare-se para tomar um soco no estômago. Não uma pancada qualquer, mas sim uma das mais fortes porradas cinematográficas dos últimos anos: estréia em todo o Brasil o pesadíssimo drama Réquiem para um Sonho, uma viagem – literalmente – alucinante pelo mundo das drogas. Não o mundo underground, escondido nos becos e bueiros, mas sim o mundo que poderia ser o de qualquer um. Seu, de seus amigos... e até de sua mãe.

A história mergulha no universo de quatro pessoas e seus sonhos: o jovem Harry (Jared Letho, de Psicopata Americano e Clube da Luta) persegue o ideal de riqueza e felicidade. Sua mãe, Sara (Ellen Burstyn, de O Exorcista), entra em estado de ansiedade quando é convidada a participar de um programa de televisão. Marion (Jennifer Connely, a ex-atriz mirim de Era uma Vez na América) quer abrir a própria grife de roupas.

E Tyrone (Marlon Wayans, em papel diametralmente oposto às besteiras que tem feito em Todo Mundo em Pânico) acredita que a droga pode patrocinar estes e outros sonhos. Enquanto a perspectiva do dinheiro fácil seduz os jovens, a ditadura do emagrecimento e da mídia tira Sara de seu frágil eixo emocional. O resultado se assemelha a um trem fantasma que mergulha para uma viagem de horror. Um caminho sem volta em que o vício impera e age como uma missa de réquiem para toda e qualquer perspectiva de vida.

Réquiem Para um Sonho é baseado no livro Last Exit to Brooklin, publicado em 1964 por Hubert Selby Jr., que já havia originado o filme Noites Violentas no Brooklyn, em 1969. Esta nova versão vem com a modernidade da direção do nova-iorquino Darren Aronosfky, cineasta que arrancou elogios da crítica internacional com o drama Pi (ainda inédito nos cinemas paulistanos), que já prepara uma nova versão de Batman para o próximo ano. Em ritmo de videoclipe, Aronosfky usa e abusa da montagem fragmentada, explora super closes, distorce as imagens com lentes em grande angular e cria um universo assustadoramente onírico para seus personagens.

Ellen Burstyn, indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro pelo papel, teve de se submeter a torturantes sessões de maquiagem, que incluíam roupas especiais de até 20 quilos e próteses que chegaram a queimar sua pele. A atriz também vestia uma estrutura especial sobre a qual era montada a câmera de filmagem, tudo em nome dos ângulos inusitados buscados por Aronosfky.

Todas estas alucinações técnica, formal e de conteúdo fazem de Réquiem para um Sonho um perturbador, violento (e sem concessões) manifesto contra as drogas. Um filme que, apesar de ser recomendado para maiores de 18 anos, deveria ser visto pela camada jovem da população e até – polêmicas à parte – exibido em escolas.

Crítica: Celso Sabadin/Cineclick  

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Exit Through the Gift Shop

 O documentário, dirigido pelo elusivo artista de rua Banksy (aquele, da introdução polêmica dos Simpsons), narra a surpreendente história, supostamente real, de Thierry Guetta, um videomaker francês vivendo em Los Angeles que é convidado a registrar os expoentes da street art com o intuito de realizar um filme sobre eles. "A street art, diferente de pinturas a óleo sobre tela ou outras obras feitas para durar, tem vida curta. Precisávamos de alguém que soubesse usar uma câmera para documentá-la", comenta Banksy no vídeo.

Porém, depois de acompanhar Banksy e outros artistas ao longo de meses, Guetta, cujos filmes são inassistíveis, decidiu tornar-se ele próprio um street artist. De registrador ele passa a ser o registro.


Acompanhar o processo "criativo" de Guetta, que assume a alcunha Mr. Brainwash, é uma mistura de fascínio e ojeriza, um acidente automobilístico em stêncil. O emergente artista enche um galpão com telas e gravuras, monta suas próprias - e pífias - reinvenções da Pop Art, cria reproduções "exclusivas" de sua obra dirigindo um velocípede enquanto besunta tinta sobre elas e espalha rios de spray por qualquer superfície sem conceito ou direcionamento. O ex-videomaker claramente não sabe o que está fazendo, tanto que contrata outras pessoas, talentosos designers e ilustradores, para realizar sua exposição sob sua alucinada direção.

A segunda metade da produção acompanha os preparativos para a grande exposição de Mr. Brainwash, alardeada pela mídia depois que uma citação fora de contexto do próprio Bansky é empregada na divulgação. E o risível artista subitamente toma de assalto o mundo das artes, gerando milhões...

Especula-se que a história toda seja uma grande farsa criada por Banksy. É tudo perfeito demais, engraçado demais. Guetta se acidenta, bate a cabeça em postes, derruba um latão de tinta cor-de-rosa dentro de seu carro... é um Buster Keaton das artes. A própria natureza contestadora do trabalho de Banksy, que critica de maneira bem-humorada a sociedade e o governo, seria indício dessa peça que ele, agora como cineasta, teria pregado no mundo das artes. O personagem Mr. Brainwash seria a maior de todas as obras do inglês, portanto, e Exit Through the Gift Shop, seu Bruxa de Blair.

Mas independente da veracidade ou não do documentário (?), o filme cumpre o que se propõe: inicia, com um atônito sorriso, um debate sobre a arte nos dias atuais.

Crítica: Érico Borgo/Omelete


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Garoto da Bicicleta

Como O Garoto da Bicicleta, novo filme dos irmãos Jean-Luc e Pierre Dardenne, é protagonizado por uma criança, mas não visa a um público necessariamente infanto-juvenil, não é de se espantar que os temas da obra sejam livres de predisposições etárias. Cyril (Thomas Doret), de 11 anos, passa por situações complicadas, pois vive em um internato e quase nunca consegue falar com o pai, Guy (Jérémie Renier).

Apesar de sempre ouvir a caixa eletrônica no telefone, nunca receber ligações em retorno e até mesmo saber que Guy já se mudou, Cyril se mantém determinado a contatá-lo. Tenta também encontrar sua bicicleta, muito especial, mas dizem que ela foi vendida. Samantha (Cécile de France), ao ouvir a história do garoto, decide reaver a bicicleta. Ele agradece e em breve já pede para passar os fins de semana com a mulher. Cyril, porém, é bem mais bravo do que ela esperava.

O principal desdobramento do roteiro é o envolvimento do jovem protagonista com Wes (Egon di Mateo), que é taxado de traficante pela vizinhança. É a partir dessa relação que o projeto dos Dardenne se tornará mais claro. Cyril, na verdade, passa por sentimentos, ou poder-se-ia dizer até por tirocínios, que não têm idade definida para sucederem. Na verdade, nem todo mundo recebe essas lições da vivência, pois elas só se revelam úteis quando têm de ser postas em prática.

É, essencialmente, um filme de erros. O garoto se inicia errando na acepção popular: ele incorre em um grande engano na busca fantasiosa por um progenitor que não corresponde às exigências mínimas da paternidade. Após a “adoção” de Samantha, aí sim existem toques de uma errância clássica. Não que o tempo que ele passa com Wes seja apenas isso, já que o suposto traficante, que lhe oferece diversão e lições, lhe parece a possível figura paterna que o torna tão obsessivo e focado.

Através destes ensinamentos, Cyril se torna um errante. Sua confiança, gerada talvez pelo desejo de ter um pai funcional, é o ponto de partida para atos desencontrados, fúteis, e a partir destes erros ele encontrará o aprendizado de fato. Desde o início, percebe-se que o personagem insiste no equívoco, mas aprende: quando ele vê dilacerada uma de suas esperanças, apesar de normalmente ter outra pronta para usar como norte, o garoto não teima em se opor à realidade.

Mais um sinal de que os cineastas não querem emular a mentalidade infantil – pois a criança costuma ser acoplada a uma visão de mundo mais suave, ou até mesmo falsa, quando a verdade é brutal –, e sim experiências específicas. O conflito em que Cyril se envolve no terço final da projeção é absurdo, mas funciona como um rito de passagem de um lado a outro da percepção da violência. Vale notar que ele pede desculpas pelo ferimento que causou em Samantha, e não pela imensa turbulência emocional pela qual ele a fez passar.

De um lado, há o aprendizado da brutalidade, que desencadeia na prática, de forma justa, mais brutalidade, escancarando o rito de passagem em dois personagens de idades distintas; do outro, o ensinamento sobre esperanças otimistas prescinde de uma comparação tão visível. É uma jogada um tanto ousada, pois sugere o envolvimento do espectador na medida em que não mostra uma pessoa mais velha sofrendo pelos mesmos motivos de Cyril. É como se o expurgo moral da violência fosse preferível apenas no tecido moral da ficção, ao passo que o otimismo é mais trivial – é comum e até banal passar pela superação dessa visão de mundo.

Esperança, inconsequência, individualismo: o pequeno protagonista de O Garoto da Bicicleta carrega em si atitudes que quase nunca desaparecem por inteiro nas pessoas. O enfoque na infância apenas indica que não existe idade breve demais para superar – ou, ao menos, para a suspender, em certos momentos – essas posturas. O garoto simboliza a experiência em curso, e agrega diversas lições, ordinárias ou não, nessa rica e agitada vivência.

Uma melodia toca em uns poucos momentos de transição, mas se dissipa antes do corte, deixando sons ou silêncio. O contraste contido nesses planos musicados/silenciosos atesta tanto para o valor fabular, de aprendizagem, como para a viva banalidade do movimento ou do repouso: os Dardenne se dedicam ao conjunto indissociável dos dois registros.

Crítica: Pedro Costa De Biasi/Cinepop