Nenhuma palavra é excessiva, nenhum corte é impreciso, nenhuma imagem supérflua em Os Incompreendidos (1959), o primeiro longa-metragem de François Truffaut, que volta hoje ao cinema em cópia nova. Assim, quando o professor zomba de um poema escrito na parede por Antoine Doinel, o personagem principal, dizendo que o menino de 13 anos quer ser poeta "sem saber distinguir um alexandrino de um decassílabo" e que ele "massacra a prosódia francesa", o endereço é um só. O professor encarna a "tradição de qualidade" do cinema francês, que, como crítico, Truffaut combateu com unhas e dentes.
O alvo de Truffaut eram os filmes que se davam por satisfeitos em buscar respeitabilidade em características externas a si mesmos, como origem literária, atores celebrizados no palco, cenografia dispendiosa. Contra o cheiro de mofo do cinema "nobre", Truffaut propunha um cinema abertamente plebeu, e muitas vezes descaradamente burguês.
Os Incompreendidos não foi o primeiro filme da Nouvelle Vague, mas Truffaut, aos 27 anos, o realizou com a convicção de que era um manifesto estético. Acossado, que Jean-Luc Godard lançaria alguns meses depois, completaria o serviço, e o cinema francês mudaria para sempre. Truffaut e Godard, que haviam sido os críticos mais destacados entre os "jovens turcos" da revista "Cahiers du Cinéma", escreveram juntos o argumento inicial dos dois filmes. Bem mais tarde, nos anos 70, os dois tiveram uma briga definitiva, mas cada um já tinha tomado rumo bem diferente daquele que um dia os havia unido. Quando Os Incompreendidos recebeu o prêmio de melhor direção no festival de Cannes, Godard fez a comemoração mais célebre.
"Nós, como críticos, vencemos com o princípio de que um filme de Alfred Hitchcock é tão importante quanto um livro de Louis Aragon", escreveu. "Hoje a vitória é nossa". Eles, como críticos, tinham princípios ainda mais ousados. "Qualquer um pode ser diretor de cinema" e "só o amadorismo salvará o cinema" eram outros dos lemas de Truffaut e Godard em seus tempos heróicos.
Porque é um grande filme, mas também, talvez, porque o estado geral do cinema hoje em dia se preste a suscitar reações revoltadas como aquelas, Os Incompreendidos transcorre na tela com tanta fluência, tanta beleza, que humilha todos os outros filmes em cartaz. Truffaut conta a história de sua primeira adolescência, com uma ou outra alteração de fatos, mas todas as sensações intactas, sobretudo uma sensação de clandestinidade, a que sempre se referia - clandestinidade porque fugir da presença dos pais, e cuidar para que eles não percebessem, era sua atividade prioritária. Não havia refúgio mais completo, nem mais prazeroso do que os livros e o cinema.
Truffaut se sentia desprezado e odiado pela mãe, e tolerado pelo pai adotivo (como o de Doinel). Segundo ele, não era maltratado; era simplesmente "tratado". Dizia isso em entrevistas e disse também para o pai, numa carta furiosa enviada depois do lançamento de Os Incompreendidos, em resposta a outra, não menos furiosa, em que Roland Truffaut se queixava de ter, com a mulher, se tornado objeto de ódio nacional, por causa da exposição pública dos rancores de François.
Se o filme não se tornou uma ladainha de autocomiseração - longe disso -, em parte foi porque Truffaut encontrou um ator que foi também um autêntico colaborador. Ligeiramente inclinado à delinqüência, como Truffaut, Jean Pierre Léaud matou aula no dia em que compareceu ao teste para o papel, que foi sendo mudado para se adaptar a ele. Na história do filme, Truffaut entrou com muitos fatos - como o personagem, ele foi internado num reformatório pelo pai, roubou uma máquina de escrever, venerava Balzac e freqüentemenete era deixado sozinho em casa. Léaud entrou com um pouco do espírito. Truffaut dizia que seu ator (que faria o papel de Antoine Doinel em outros quatro filmes), por seu romantismo visceral, era um homem do século XIX.
Inimigo das generalidades categóricas e dos golpes de teatro, Truffaut evitou envolver Doinel e seus pais num clima de pesadelo de Dickens (a presença do escritor inglês está em outros elementos, como a mansão empoeirada em que mora seu amigo, saída diretamente de Grandes Esperanças). Doinel não sofre violência física, nem mesmo ameaças, e seus pais têm algumas das melhores características humanas. À mãe cabe a beleza: em sua primeira aparição tira as meias e deixa ver as belas pernas; mais tarde, explica ao filho o valor dos estudos (para que ele saiba escrever cartas) e, quando ele é enviado ao reformatório, pede que seja escolhido um lugar à beira do mar. Ao pai, cabe o humor. De ambos, Doinel tira indicações que o levarão aos livros e ao cinema. Quando ele foge de casa, dorme numa gráfica. À procura de uma liberdade que seus pais lhe dão pela metade, encontra na rua ninguém menos que Jeanne Moreau procurando um cachorrinho, e se deixa enfeitiçar imediatamente por ela.
Os Incompreendidos é dedicado a André Bazin, o crítico de cinema que recolheu Truffaut do reformatório e lhe deu a oportunidade de escrever para os "Cahiers". Bazin, a quem o cineasta considerava pai, morreu no primeiro dia de filmagens. Um pouco da fotografia altamente contrastada de Henri Decae, um pouco da gravidade do olhar de Léaud (congelado na seqüência final) transmitem a atmosfera de luto num filme que não poderia mesmo deixar de ser, simplesmente, triste. Mas Os Incompreendidos tem momentos muito engraçados, em especial a maioria das cenas na sala de aula, e outros de enorme encantamento, todos diretamente relacionados ao mundo do espetáculo: o carrossel que parece uma lanterna mágica, o teatro de fantoches, a alegre volta do cinema no carro do pai. Com esta estréia, Truffaut conseguiu o raro feito de transformar admiração em arte, encontrar a própria voz em meio a um emaranhado de referências externas. Foi em Jean Vigo e Roberto Rossellini que ele encontrou a inspiração que procurava, para combater a sofisticação e o sentimentalismo, como diria depois.
Fonte: Cinema Terra
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