sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Irreversível

Depois de destruir o que há pela frente, o tempo fica irreversível. Antes de ele chegar, você pode muito bem escolher ações pensando ou não pensando em consequências, cada uma mais imprevisível que a outra. Mas depois não coloque o problema no tempo. O filme reverte situações irreversíveis como o abuso sexual e a violência gratuita resultante de sentimentos à flor da pele. O grande vilão do filme é o próprio ser humano, culpado por suas escolhas, culpado por suas ações. A ordem dos fatores não altera o produto, certo? Irreversível não teria o mesmo peso se sua linearidade fosse normal. De trás pra frente, há a visão das consequências para depois vermos as escolhas darem errado, e não há absolutamente nada que possamos fazer. Noé substituí a surpresa pela crueldade, e dá certo. E assim o filme termina, em meio a cenas cruéis e necessárias que acontecem a todo canto com uma frequência banalizada. Termina exatamente como se começa.

O tempo destrói tudo. O tempo acaba por destruir tudo, como já nos avisaram no início da sessão. O clímax do filme só confirma essa afirmação. O sentimento de repugnância pela nossa semelhança está lá. Quem está atrás do submundo francês, quem está por trás de estupros e assassinatos, quem está atrás da prostituição, quem está atrás da violência é o próprio ser humano. Uma pessoa semelhante ao espectador que comete uma violação retratada em 11 longos minutos na cena chave de Irreversível. Isso fica bastante claro, já que sabemos o tempo inteiro que o estuprador tem uma cara, um rosto, um nome e que faz isso pelo puro prazer pessoal. Com reviravoltas, o público acaba por ter pena do monstro que acaba por virar pessoa. Irreversível tinha chances para ser um filme extremamente simples sobre vingança. Um roteiro fácil sobre o ódio do estupro pode resultar nisso. Mas com a construção dos personagens de forma forte e a direção intimidante de Gaspar Noé ao criar sensações de vertigem e cenas doentias, o filme se torna algo a mais para ser visto, por mais que grande parte não consiga entender o peso real de um assassinato e de um estupro de modo explícito aqui.

O filme é intimidante e desconfortável. Submetido à tamanho desconforto, qual a primeira emoção que o público sente no fim da sessão? Através da linearidade alterada, de atuações ferozes, de uma câmera manual que se sacode e atravessa pontos para dar mais realidade, e de uma explosão de luzes e imagens envolvendo sexo explícito, consumo de drogas, sodomia, masturbação e violência, Noé faz de tudo para o espectador de Irreversível se sentir desconfortável o suficiente para abandonar o filme nos primeiros minutos. O brilho emitido sem cortes, os planos utilizados por inversão, os créditos iniciais acompanhados de sons como tiros, o desconforto fica aparente na filmagem do diretor. Há, para aumentar essa sensação nauseante nos mais fortes, duas cenas que conseguem chocar o público inteiro, ambas mostradas através de longa-sequências e de um ângulo usado de modo a permitir a entrada das pessoas no ambiente degradante do filme. Luzes estroboscópicas e gemidos agudos, misturados com uma escuridão confusa iluminada por uma luz vermelha bruxuleante, já dão náuseas suficientes para quem vê a película. Seria desagradável se tudo isso fosse em vão, ainda bem que Noé sabe administrar suas cenas com crueza e ódio dignos.

Não se espera aqui um relato amarrado sobre o estupro, não se espera aqui um filme cruel sobre a violência, se espera aqui a realidade do ser humano. Se ele é cruel ou deixa de ser, se o estupro é hediondo ou necessário, isso se torna extremamente relativo na mente em que essas ideias são armazenadas. Gaspar Noé cria aqui um ambiente ambíguo. Você é capaz de qualquer coisa se submetido a certas situações, e o diretor prova isso na personalidade tanto de Cassel quanto de Dupontel. Marcus, personagem de Vincent Cassel, começa o filme irracionalmente violento, beirando suas emoções que estavam presas em sua garganta. Mas ao longo do filme ele se mostra um romântico bobo como qualquer outro. Qualquer romântico pode se tornar, numa questão de horas, em uma máquina mortífera? O tempo que diz, veja o que aconteceu nessas horas pra depois ter suas perguntas respondidas. Pierre, personagem de Dupontel, começa o longa metragem numa cena que beira tanto a crueldade que ele pode ser interpretado, erroneamente, como um psicopata. Mas, chegando ao fim, o personagem dele é tão tímido e tão manso que não dá para se acreditar que é a mesma pessoa retratada em ambos os momentos.

De trás para frente, o filme mostra ódio e vingança que podem parecer sem sentido para os espectadores, mas vai se revelando cada vez mais realista à medida que o filme avança para seu desfecho e a trama para seu início. Marcus (Vincent Cassel) é um homem boêmio, apaixonado por sua namorada Alex (Monica Belucci), que vai até o fim do mundo por ela, e prova isso. Junto com Pierre (Albert Dupontel), ele sai, por ruas parisienses, atrás do homem que espancou e estuprou Alex em busca da justiça feita pelas próprias mãos.

O tempo destrói tudo. Assim começamos Irreversível, a obra de linearidade alterada que deu mais notoriedade para o diretor argentino Gaspar Noé, já responsável por vários curtas e pelo premiado longa Sozinho Contra Todos, todos trabalhando com as mais diversas emoções para um público sedento por um sentimento, seja ele qual for. Noé trabalha aqui usando o tempo como o principal fator da discórdia e do conflito, pois sentimos no filme primeiramente a ação para depois sabermos do motivo. E é assim, de trás para frente, que o filme segue, dando lugar ao amor, à repulsa, ao ódio e à vingança. Mas fique preparado, Irreversível te bombardeia com emoções extremistas e você tem que aceitá-las do melhor modo possível para então compreender o que vem depois - e então, sentir o mesmo que os personagens da tela sentem.

Fonte: Crítica Mecânica /Gabriel Neves



Um comentário:

  1. Espetacular... filme indispensável, final delicioso regado à 7ª sinfonia... Parabéns pelo post.

    ResponderExcluir